sábado, 4 de dezembro de 2010

As farpas


As Farpas

Eça de Queiroz

"Aproxima-te um pouco de nós e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos. A práctica da vida tem por única direcção a conveniência. Não há príncipio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita,absoluta indiferença de cima abaixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agitagem explora o lucro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos,vivendo em casebres ignóbeis,sustentando-se de sardinhas e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável,sacudida pela penhora; a população ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva únicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais. Não é uma existência,é uma expiação. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte:o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete que de norte a sul, no Estado, na economia, no moral, o país está desorganizado-e pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão! "

Eça de Queirós escreveu isto em 1871, durante mais quanto tempo se manterá actual?

Um Ministério dos parvos modos de andar já não me parece assim tão impossível...

1 comentário:

  1. " O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos".- Acho que E.Queirós critica um pais que não esta de acordo com os parâmetros que ele definiu como civilizados -

    "foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela.
    Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos."

    Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

    É o que da olhar para a civilização dos outros e querermos ser assim civilizados.

    Por outro lado:
    "Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam."

    Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro


    Portugal e os Portugueses são grandes , não o digo só por ser Portuguesa , digo.o porque dentro do meu parâmetro de civilizacional o entendo assim.

    Comprimentos
    C.Monteiro

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